Na
atualidade, está estabelecido que, para melhor entender o processo saúde-doença
em qualquer comunidade, é necessário entender o ser humano em seu meio físico,
biológico, social e econômico. Estes meios são considerados fatores determinantes
e condicionantes deste processo, estabelecendo a ocorrência e a prevalência das
doenças infecciosas e parasitárias nas paisagens terrestres e/ou aquáticas, bem
como seus comportamentos, que são influenciados por estes fatores. O agente
infeccioso é, na verdade, apenas uma das causas da ocorrência das endemias. É o
que chamamos de conceito de multicausalidade (DIAS LIMA, 2014).
Considerando
uma abordagem mais ampla à saúde e ao bem-estar das sociedades, surge o
conceito de Saúde Única (One Health). Tal termo
realça a indissociabilidade entre saúde humana, animal e ambiental,
contemplando o estudo de ecossistemas completos (incluindo animais silvestres),
relações mutualísticas entre homem e animal, além de estudar redes que avaliam
aspectos relacionados ao desenvolvimento de enfermidades (ZINSSTAG, 2011)
A
ecologia médica insere-se nesse contexto, visto que, essa ciência estuda as
doenças e seus fatores relacionados ao homem, meio ambiente e seus
desequilíbrios. Logo, é possível classificá-la como o elo para entendimento dos
fatores ambientais, a saúde humana e a vigilância sanitária e ambiental (DIAS
LIMA, 2014).
É
importante compreender que o homem, que é base dessa observação científica,
configura-se como parte integrante da natureza, capaz de interagir com ela e
vice-versa. Portanto, o homem não está desconectado do universo, mas sim,
inserido em uma grande teia, na qual qualquer ação pode gerar impactos que
afetem todo o sistema. Os diversos fatores fisiológicos que contribuem para o
aparecimento das doenças estão interligados entre si, ou seja, todos os seres
estão integrados e o que o homem faz com o meio ambiente gera repercussões em
todos os âmbitos da vida, especialmente na saúde (DIAS LIMA, 2014).
O
novo ambiente urbano trouxe novos riscos e fontes de doença aos seres humanos.
Questões como a poluição, a contaminação de alimentos por resíduos químicos, e
o próprio estresse gerado pela vida em grandes cidades, se tornaram sérios
problemas de saúde pública. E pior, alguns vetores e microrganismos estão sendo
selecionados e cada vez mais adaptados aos ambientes urbanos, trazendo de volta
as ameaças de epidemia, como o caso da infestação por Aedes aegypti que
observamos nas cidades brasileiras. Existe uma infinidade de doenças causadas
por vírus, bactérias, fungos, protozoários e ectoparasitas de origem animal e
que podem acometer o homem. Inúmeras são as possibilidades de transmissão de
doenças ao homem pela ingestão e/ou inalação de líquidos orgânicos, excretas,
carnes e produtos em geral (DIAS LIMA, 2014).
Nas
áreas profundamente perturbadas pelo homem, rompe-se o equilíbrio intra- e
interespecífico, os mecanismos controladores ou estabilizadores das populações
deixam de operar, e o incremento e a redução demográficos tornam-se
imprevisíveis e desordenados. Dessa condição surgem as epizootias e as
epidemias. No entanto, quando pesquisadores e especialistas detêm conhecimentos
no âmbito da ecologia médica sobre determinados agentes, hospedeiros, meio
ambiente e doenças, existe a possibilidade de prever certos acontecimentos.
Assim, torna-se mais fácil aplicar medidas preventivas, e o controle é menos
oneroso aos cofres públicos e à sociedade (DIAS LIMA, 2014).
A
evolução dos conceitos de Saúde Única, da teoria para a prática, também prevê a
participação ativa da comunidade, mediante os diversos desafios enfrentados por
essa proposta. O primeiro desafio é desenvolver e sustentar colaborações
transversais de longa duração, pois novas estratégias e políticas
governamentais são necessárias para garantir essas parcerias. O segundo é uma
perspectiva coerente de saúde entre espécies e disciplinas, no tocante da
unificação dos conceitos de saúde humana, animal e ambiental. E o terceiro é,
justamente, pôr tais conceitos em prática (GEBREYES, 2014; MACKEY, 2014)
Um
dos grandes impasses para o desenvolvimento da Saúde Única é o sentimento de
superioridade e a falta de diálogo entre alguns profissionais de saúde humana,
animal e ambiental, sem contar nas barreiras existentes entre profissionais do
setor público e privado. Porém, várias organizações internacionais como OMS,
FAO e OIE têm estimulado ações sobre o tema, visando o caráter multidisciplinar
e a capacitação, para que estudantes, profissionais e a própria comunidade
possam imergir nesse novo conceito e discutir a implementação de medidas no
tocante à Saúde Única.
O
caráter multifatorial dos problemas de saúde demanda estratégias para reduzir a
exposição a fatores de risco do meio ambiente. O que se observa atualmente no
processo saúde-doença é a separação prática entre o meio ambiente e a saúde
humana, com os profissionais de saúde e as políticas públicas, em geral, se
limitando principalmente ao tratamento e aos cuidados dos doentes, ficando a
prevenção em segundo plano. São necessárias, portanto, abordagens e atitudes
para a promoção de saúde, qualidade de vida e prevenção de enfermidades
associadas ao meio ambiente, pelos profissionais da saúde (DIAS LIMA, 2014).
De
acordo com a Fiocruz, as mudanças climáticas são a maior preocupação na área de
saúde do século 21. Pequenas mudanças de temperatura e chuvas podem gerar
muitos impactos na transmissão de doenças transmitidas por vetores e pela água.
Segundo o relatório, em 2016, a capacidade vetorial global para a transmissão
do vírus da dengue foi a mais alta já registrada, subindo em 9,1% para o Aedes
aegypti e 11,1% para o Aedes albopictus, a partir da linha de base de 1950. A
cólera e a malária também registraram aumentos associados a mudanças climáticas
(FIOCRUZ, 2018).
Anthony
Costello, co-presidente do Lancet Countdown e ex-diretor da OMS, afirma que “a velocidade da mudança climática ameaça
nossa vida e a vida de nossas crianças. Seguindo as tendências atuais,
esgotamos a provisão de carbono necessária para manter o aquecimento abaixo de
dois graus até 2032. Os impactos das alterações climáticas sobre a saúde acima
deste nível ameaçam sobrecarregar nossos serviços de emergência e de saúde”
(FIOCRUZ, 2018).
Ao
analisar os impactos que as mudanças climáticas podem causar na saúde, pode-se
elencar: Ondas de calor associadas ao aumento das taxas de estresse por calor,
insolação, insuficiência cardíaca e lesão renal aguda por desidratação; a
segurança alimentar, com a diminuição do rendimento das colheitas em todas as
regiões do mundo; a alteração dos fluxos pode causar mudanças nos ecossistemas
e gerar o aparecimento de novas doenças, além de alterar a incidência de
doenças vetoriais já conhecidas; com as enchentes, pode haver comprometimento
da água da rede utilizada pela população, bem como poços e nascentes, que
acabam sendo contaminados por agentes infecciosos presentes nas águas das
enchentes, aumentando o risco de doenças transmitidas pela ingestão da água;
alteração nos ciclos de reprodução dos vetores, hospedeiros e reservatórios de
doenças, através da proliferação de locais com águas residuais, lixo, silte e
material em decomposição que recobrem as ruas e os solos após as enchentes
(FREITAS e XIMENES, 2012).
Dessa
forma, os profissionais de saúde devem
estar preparados para uma análise crítica dos desafios apresentados nesta área,
para que sejam agentes de mudanças e profundas transformações no processo
saúde, meio ambiente e prevenção de doenças humanas, com base nos princípios e
reflexões da Saúde Única. Além disso, estudar e aplicar medidas de prevenção e
controle para diminuir os impactos causados nesse contexto.
Tendo
em vista os benefícios da integralização da saúde humana, animal e ambiental,
com um olhar focado no impacto das mudanças climáticas na saúde, é de extrema importância agregar esse conceito
à formação de toda rede discente da Universidade Federal do Sul da Bahia (em
especial os cursos de Bacharelado Interdisciplinar em Saúde e Ciências e o
curso de Medicina), bem como os profissionais já atuantes na região de áreas
correlacionadas, a fim de torná-los sujeitos que compreendam que a saúde humana
não pode ser isolada, mas sim, unificada com os demais contextos. A partir de
então, medidas promotoras de saúde poderão ser pensadas e postas em prática
junto aos setores desse tripé, beneficiando toda a comunidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIAS-LIMA, A. Ecologia médica: uma visão holística no contexto das enfermidades humanas. Revista brasileira de educação médica, Rio de Janeiro, v.38, n. 2, p. 165 – 172, 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v38n2/a02v38n2.pdf
FIOCRUZ.
Estudo alerta para impactos das mudanças climáticas na saúde. 2018. Disponível
em:
https://portal.fiocruz.br/noticia/estudo-alerta-para-impactos-das-mudancas-climaticas-na-saude.
Acesso em: 24 de Ago 2019.
FREITAS,
C. M. ; XIMENES, E. F. Enchentes e saúde pública – uma questão na literatura
científica recente das causas, consequências e respostas para prevenção e
mitigação. Ciência & Saúde Coletiva,
v 17, n. 6, p 1601-1615, 2012. Disponível em: file:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232012000600023&script=sci_abstract&tlng=pt
GEBREYES,
W. A. et al. The Global One Health Paradigm: Challenges and Opportunities for
Tackling Infectious Diseases at the Human, Animal, and Environment Interface in
Low-Resource Settings. PLOS Neglected Tropical Diseases, São Francisco, v.8,
n.11, e3257, 2014. Disponível em:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4230840/
MACKEY,
T.K. et al. Emerging and Reemerging Neglected Tropical Diseases: a Review of
Key Characteristics, Risk Factors, and the Policy and Innovation Environment.
Clinical Microbiology Reviews, Washington, v. 27, n. 4, p. 949-979, 2014.
Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25278579
ZINSSTAG,
J. et al. From “one medicine” to “one health” and systemic approaches to health
and well-being. Preventive Veterinary Medicine, Amsterdam, v. 101, n.3,
p.148-156, 2011. Disponível em:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3145159/